A nova ordem mundial na era do capitalismo cognitivo.


A NOVA ORDEM MUNDIAL NA ERA DO CAPITALISMO COGNITIVO:

Uma apreciação crítica da obra Império de Hardt & Negri

Ednei de Genaro (2009)

INTRODUÇÃO

A ascensão da chamada Terceira revolução industrial trouxe, a partir da década de 1970, inovações tecno-científicas que acarretaram diversas mudanças no modo de produção capitalista. Uma nova caracterização da divisão internacional do trabalho emergiu. Autores como M. Hardt e A. Negri – assim como outros teóricos sociais conhecidos como Daniel Bells, André Gorz ou David Harvey –, dedicaram extensos estudos e teorizações para entender como a categoria política e social do trabalho sofreu modificações.

Na verdade, além da categoria do trabalho, toda uma ‘reestruturação do capital’ expandiu-se no plano global. A questão da internacionalização econômica (ou do propalado termo globalização) aumentou exponencialmente a mundialização de capitais (na forma financeira) e as trocas mercantis, modificando as formas regulação e controle da reprodução do capital pelos agentes econômicos, políticos e sociais em todas as escalas territoriais. A crise estrutural do capitalismo provocou um ‘desespero intelectual’ pela busca de novas fórmulas e conceitos para este novo contexto. Isto é palco de divergências, polêmicas e debates que marcam a literatura contemporânea sobre o assunto.

Ora, a produção capitalista, em sentido lato, alterou-se. Com o fim da era fordistae início de uma nova forma de acumulação – a acumulação flexível –, como sentenciou F. Jamenson [1], ficou cada vez mais dependente de uma regulação por meio da lógica cultural. Nesse sentido, uma das mudanças mais interessantes foi a penetração cada vez maior das chamadas novas tecnologias da informação e comunicação. Modernas redes de comunicação e circulação possibilitaram que as diversas mídias, o marketing, as indústrias de entretenimento e de serviços etc. tivessem grande importância na diversificação e aumento do consumo e, enfim, na garantia do processo de reprodução do capital [2].

Entendemos que é no contexto exacerbado da acumulação flexível que o capitalismo é hoje diagnosticado e estudado de muitas formas. Aparecem assim noções diversas como: capitalismo ‘cultural’, ‘cognitivo’, ‘pós-industrial’, ‘hiperindustrial’. A partir da obra Império, de Hardt & Negri, poderemos alcançar as consequências bastante difícil desse novo contexto: analisar a questão da teoria política da ‘nova era do capitalismo’. Os autores apresentam uma abrangente teorização que alimenta o debate intelectual em áreas como as Relações Internacionais, na Teoria Social e Política ou na Economia.

Frente a este contexto, em primeiro lugar, exporemos ao leitor os centrais argumentos presentes na proposta de Hardt & Negri, atentando às filiações teóricas que estão por trás. A seguir, o artigo trata sobre o debate em que a obra emerge e suscita; para enfim assegurarmos algumas considerações finais a respeito.

UMA NOVA TEORIA POLÍTICA PARA UM NOVO PODER MUNDIAL

HARDT & NEGRI (2001) surpreenderam o mundo acadêmico descrevendo uma nova forma de domínio e soberania que estaria preste a predominar como a nova ordem global vigente, e que seria o palco de conflitos políticos futuros. Intelectuais que advogam um pensamento autônomo e oblíquo ao mundo acadêmico, Hardt & Negri introduziram a ideia de uma nova lógica e estrutura de comando e supremacia global como uma grande aposta conceitual para analisar o fim da ‘era imperialista’.

O que marca nas construções dos autores foram suas capacidades de acolher e conjugar maneiras marxistas de pensar a sociedade, isto é, de fundo emancipatório, com as propostas ditas pós-modernas que mudaram a forma de conceitualizar o poder, o sujeito, o conhecer, a história etc.

Mais do que um ‘verniz intelectual’, os autores conseguem extrair um conteúdo sui generis em suas teorizações. Isto pode ser percebido pelos fortes debates que demandou. Em Império, estabelece-se a ideia de que a ascensão de redes de governos mundiais em torno do globo: as instituições supranacionais, como as Nações Unidas, o FMI, bem como os conglomerados internacionais privados e as ONGs, diferem do Imperialismo clássico, que centrou o poder sobre os Estados-Nação. O Império, com seu poder global de comando, seria então a etapa do capitalismo em que as instituições de regulação e coerção social estariam descentralizadas e universalizadas, fato que deslocaria a posição dos Estados como autoridade soberana ou de liderança mundial (como ocupou os EUA durante longo tempo). Como argumentam:

o mercado globalizado adquire sua unidade política por intermédio de atributos que sempre caracterizaram a soberania: o poder militar, monetário, comunicativo, cultural e idiomático. O poder militar origina-se de um poder irrestrito de dispor sobre um arsenal bélico abrangente, inclusive armas nucleares. O poder monetário se baseia sobre a existência de uma moeda forte hegemônica, à qual o mundo financeiro, apesar de sua diversidade, está completamente subordinado. O poder da comunicação se mostra pelo triunfo de um único modelo cultural ou até de uma única língua universal. Esse dispositivo de poder é supranacional, global e total: chamamo-lo de Império (idem, p. 347).

Em outras palavras, a era da soberania Imperialista – como a americana – não tem mais primazia porque não existe mais nada para esta significativamente ‘conquistar’. O Império já abarca o mundo todo. Por isso não possui um “lado externo”, nem sequer conduz a guerra no sentido tradicional (os conflitos hoje são intercedidos por ‘tropas de intervenção’, por ‘polícias’ mundiais do novo Império, dizem Hardt & Negri).

Por ocasião das mudanças das categorias de produção e troca (dinheiro, tecnologia, pessoas e bens), os autores argumentam que os comportamentos dessas categorias, “cada vez mais à vontade” e acima das fronteiras nacionais, dão base para a hipótese primordial de um novo paradigma de mundo.

O Império se auto-regula como um dispositivo – o biopolítico[3]: “Na pós-modernização da economia global, a produção de riqueza tende cada vez mais ao que chamaremos de produção biopolítica, a própria vida social, na qual o econômico, o político e o cultural cada vez mais se sobrepõem e se completa um ao outro” (idem, p. 53).

Descobrem-se as novas subjetividades que “animam” as populações. Hardt & Negri prognosticam a efetivação de formas de produtividade no contexto biopolítico do Império. Neste âmbito, a produção do capital converge progressivamente com a produção e reprodução da vida social, tornando cada vez mais difícil manter distinções entre trabalho produtivo, reprodutivo e improdutivo.

Eis, então, o que talvez seja a grande originalidade das teorizações de Hardt & Negri: com base em um profundo conhecimento do pensamento político, eles destacam a importância e os alcances das ideias de biopolítica para o contexto da produção capitalista contemporânea[4]. A partir das leituras de Foucault e Deleuze, os autores extraíram o conceito de biopoder. Para eles, o que a biopolítica vem a ser é:

a forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a e rearticulando. O poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quando se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade” (idem, p. 43).

Com DELEUZE (1992) Hardt & Negri aprenderam que nas ‘sociedades de controle’ os mecanismos para o comando da vida são cada vez mais ampliados, ou melhor, orgânicos e imanentes ao campo social. Com a tecnificação avançada das sociedades, e a correspondente inovação que se tornou imanente à produção, têm-se um tecido social e um ambiente cognitivo próprios. Deleuze foi uns dos primeiros a notar as alterações na biopolítica após os diagnósticos de Foucault. Para ele, as novas formas tecnológicas de controle bioquímico trouxeram um novo ‘modo de sujeição’ aos corpos. A complexidade do mundo imagético, medicinal e virtual que criamos conduziu a uma domesticação crescente dos desejos e sensações das sociedades. O controle biopolítico tornou-se cada vez mais ao nível psicológico e químico. Deleuze pensou na extrapolação da sociedade de poder disciplinar diagnosticada por Foucault. Estamos na sociedade de controle, lugar em que não é mais preciso os ‘confinamentos’ das instituições criadas pelas sociedades disciplinares. Os novos controles aparecem como “uma modulação, como uma moldagem auto-deformante” que mudam constantemente, a cada instante, ou aparecem “como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro”.

O novo poder biopolítico é, assim, um regime subjetivo de controle permanente, que produz seus efeitos de poder diretamente na exploração das atividades dos “corpos, cérebros e sentimentos” das sociedades democráticas de massa[5].

O regime de poder subjetivo que os autores pensam, não é sinônimo pois um termo destituído de sentido. Vale lembrar que Negri & Hardt tem, por fundo, uma nova interpretação de Marx, que retira o “objetivismo” posto nos escritos de “O Capital”, assumindo o “subjetivismo” dos manuscritos de “Grundisse”[6]. Para os autores, o trabalho, seja material ou imaterial (físico ou intelectual), produz e reproduz a vida social, e somente durante o processo é explorado pelo capital (2001, p. 426). No entanto, o que se impõe e desponta como um novo sentido ao nosso tempo é o trabalho imaterial. É ele que integra os afazeres de comunicação, cooperação, dedicação e reprodução de cuidados. Os autores distinguem, dessa forma, três tipos de trabalho: o comunicativo; o interativo; e o trabalho de produção e manipulação de afetos.

O caráter peculiar do trabalho imaterial é a possibilidade de tornar a vida do trabalhador moderno circunscrita no mundo do trabalho. No capitalismo, que depende mais do labor cognitivo do que braçal, não há margem clara para se separar o tempo livre do tempo do trabalho.

Em resumo, a nova teoria política, que une as ideias de um capitalismo cognitivo com a de biopolítica, propõe que a existência de um sujeito soberano único no globo, abrangendo dentro de sua lógica todas as formas de governo clássicas: o sistema monárquico (regendo as questões globais), o aristocrático (distribuindo privilégios a Estados limitados) e o democrático (que compõe o discurso ilusório de fundo). Uma das realidades concretas que dá afirmação às ideias do livro é por ocasião da formação de um ‘direito universal’. Como escrevem: “o ponto de partida de nosso estudo do Império é a noção de direito, ou melhor, um novo registro de autoridade e um projeto original de produção e normas e de instrumentos legais de coerção que fazem valer contratos e resolver conflitos” (idem, p. 27).

No entanto, uma nova forma de resistência (ou revolta) a este domínio global é metamorfoseada. Para os autores, é possível dizer que, a partir da radical modificação do modo de produção, através da hegemonia das forças de trabalho de subsistência cooperativa, uma subversão aos parâmetros do ‘bom governo’ é criada. Isto porque ao mudar a situação da ‘massa pobre’ do mundo de merosproletariados para a condecorada categoria de trabalhadores imateriais, uma maior substância de vida possibilita a transformações em novos atores: a multidão(que difere do conceito moderno de povo)[7]. Como escrevem Hardt & Negri, no texto “Globalização e Democracia”:

A multidão com que estamos lidando hoje é, pelo contrário, uma multiplicidade de corpos, cada um com seus entrecruzamentos de poderes intelectuais e materiais de razão e comoção; são corpos ciborgues que se movimentam livremente, sem considerações às antigas fronteiras que separavam os humanos do instrumental (2002, p. 30).

Dessa forma, a multidão consistiria a massa não identificável e descontratual por essência, que se ergue contra o Império; este último, a máquina que comanda o mundo, o novo Leviatã (idem, p. 80). Hardt & Negri dizem que o caminho natural damultidão é o da “resistência”, da “insurreição” e formação de um novo “poder constituinte” que culminaria na formação de focos emancipadores. Tal como dizem, a multidão apresentaria em si mesma o principal material do contra-poder: a ‘carne’ (que “não é matéria, não é mente, não é substância”). Os intelectuais, pois, assumem-se otimistas e proféticos:

É preciso rejeitar toda a nostalgia diante das estruturas de poder que o procederam e se opor a todas as estratégias políticas que se resuma e retorna ao arranjo antigo, por exemplo, tentar fortalecer novamente o Estado Nacional como proteção contra o capital globalizado. Portanto, o Império é melhor no mesmo sentido com que Marx insistiu que o capitalismo é melhor do que as formações sociais e as formas de produção que o procederam (…) (2001, p. 377).

Observada empiricamente nas diversas insurgências e singularidades individuais no capitalismo cognitivo (seja de trabalhadores formais, informais, precários, sem carteira assinada, do trabalho material ou do imaterial), a multidão impõe uma biopotência coletiva que circunscreve, enfim, o terreno de possibilidade à constituição sinérgica de movimentos, mobilizações, manifestações contra à nova ordem mundial. Para os autores, a positividade da biopotência coletiva se torna, em meio às coerções que recebe, uma poderosa arma de insurreição contra a era do capitalismo cognitivo e de evidenciar as questões biopolíticas na democracia contemporânea.

DEBATE EM TORNO DA TEORIA POLÍTICA DE HARDT & NEGRI

As propostas de Hardt & Negri receberam, nos anos após a publicação da obra, ampla exposições na mídia jornalística. Estas propostas, no mais das vezes, banalizaram as discussões e, seja como for, não estabeleceram contribuições. Obviamente, o debate em que a obra emerge e suscita encontrou consistências na escrita de intelectuais e de especialistas sobre o tema.

No meio intelectual marxista, a postura crítica de Hardt & Negri ao capitalismo e à mundialização neoliberal obteve certos elogios em autores como BORON (2001) e KURZ (2005). No entanto, mesmo estabelecendo preceitos do materialismo-dialético (realizando não somente uma interpretação, mas também uma proposição libertadora do mundo) e utilizando diagnósticos dos pós-modernistas, o livro Império não teve apreciação e aderência fácil. De longe, sua recepção não ficou ‘neutra’. Na verdade, foi acompanhada de grandes acolhimentos e repulsas.

BORON (2001), por exemplo, inicia sua crítica apontando para as insuficiências das discussões de Hardt & Negri. Para ele, a proposta que quer dar uma nova etapa e luz ao capitalismo, não consegue ou esquece as formulações e problemas de obras clássicas para o debate como as de Rosa Luxemburgo, Lênin, Bukarin e Kaustsky (Boron, 2001, p. 17). Boron demonstra, portanto, uma repulsa pela falta de ‘academicismo’ da obra e, por fim, pensa que as ideias de Império seguem uma leitura e visão parcial, unilateral e incapacitada para perceber a totalidade do sistema.

Para Boron, não há procedência no objetivo reivindicado pelos autores: contribuir com a criação de uma estrutura teórica geral que constitua uma caixa de ferramentas conceituais que permita assim teorizar e atuar contra o Império. Critica-se e desacredita-se em sua base em termos jurídicos que forma o “novo Leviatã” (ou seja, a ordem política do Império). Ora, pensa Boron, esquecem que a “ordem mundial” é uma conjugação de organizações de mercados, de Estados nacionais e classes dominantes (em que todos esses agentes criam políticas…), não sendo somente resultantes de um órgão público soberano, como as Nações Unidas. Assim, a supressão do sistema imperialista por um direito internacional que daria “princípios éticos supremos” não é convincente, muito menos palco para afirmar o decreto de fim da dependência econômica e tecnológica dos Estados pobres.

Nos termos críticos de um autor como Boron, entende-se que Negri & Hardt apenas conseguiram aludir sobre questões latentes hoje: a substituição social do trabalho, a formação de um capitalismo cognitivo de trabalhadores imateriais e o surgimento de uma “sociedade-informacional”. A ‘lógica antropológica’ do trabalho, que diz que o “cérebro vence o músculo”, não representaria uma consumação real. A suposta preponderância do trabalho imaterial constitui, na realidade, uma parcela insignificativa no mundo, mesmo em países ricos. A análise recai, pois, em uma ideia fetichista a respeito das novas tecnologias da informação e comunicação e uma mistificação do trabalho imaterial na “Nova Economia”.

Sérgio LESSA (2002), no artigo “Trabalho imaterial, classe expandida e revolução passiva”, realiza uma análise crítica da filosofia social impetrada em Império. No dizer deste autor, Hardt & Negri, ao dar um novo “elogio” da crise capitalista da qual estamos mergulhados, vendo ela com otimismo, propõe uma nova filosofia da história (“a nova ética”) e proclamam a anulação da “luta de classe” pela vontade de “amor para o tempo”, uma vez que o “objetivismo” de Marx ganha novo status com a transição para um “subjetivismo” que prega “revolução passiva”. Desse modo, explica Lessa, a categoria do trabalho não necessita mais de emancipação para uma atitude revolucionária, mas de uma “restauração”. Os novos operários são constituídos, pois, de uma “necessidade ontológica de revolução”, e a formação de um “poder constituinte” traria essa ontologia inata do ser (quase tautológica). Hardt & Negri estariam argumentando que a reestruturação capitalista não foi fruto da busca competitiva por mais-valia, mas veio do fato de que os trabalhadores estariam ‘fatigados’ do keynesianismo e fordismo.

Para salientar os termos críticos acima, podemos citar aqui o clássico trabalho de análise da “revolução informacional” realizado pelo neomarxista Jean LOJKINE (1995). Ele obviamente é contra qualquer teoria que dê margem a se pensar na ideia de ‘sociedade pós-industrial’ que apregoe uma fantasiástica e ideológica interpretação de que o mundo caminha por uma profunda crise da indústria tradicional e as formas de exploração do trabalho estariam surgindo ou formariam um ‘potencial revolucionário’[8]. Neste âmbito, para ele, o que pode se afirmar hoje é uma revisão da tese de um Estado-Nação como compartimento primordial da realização do lucro máximo capitalista. O argumento para isto está em analisar que há a preponderância do mercado financeiro mundial na reprodução capitalista, sendo que assim a escala nacional não é mais o locus do lucro máximo. É a mais-valia global a extensão maior do domínio econômico.

Lojkine concluía com a célebre frase medieval que se perpetua ainda hoje: “Uns rezam (orant), outros combatem (pugnant) e outros ainda, trabalham (laborant) – expressão universal da divisão de classes em todas as sociedades de classe, dos Estados sumerianos até o sistema capitalista” (1995, p. 269). A afirmação seria a lógica suprema, sempre vigente, no capitalismo. Entretanto, Lojkine (1995, p. 272) ponderava que:

a enorme complexidade da função de direção e gestão na “Revolução Informacional” transformou uma pequena elite, pertencente à classe dirigente, numa vasta categoria social multiforme, em grande expansão há trinta anos, se opõe cada vez mais a uma pluralidade de frações sociais dominadas e freqüentemente exploradas, mesmo se suas funções de criação e de organização erguem uma barreira eficaz contra toda assimilação simplista ao salariato e ao mundo do ‘trabalho’.

Robert KURZ (2005) é também categórico em descartar as proposta dos ‘neo-utopistas’ Hardt & Negri. Para ele, a ‘desmaterialização’ do conceito marxista de luta de classes significa meramente retórica. Há três pontos centrais de sua reticência. Resumimos assim: (1) não há, na verdade, trabalho ‘imaterial’, pois a base dos setores da informação e do ‘conhecimento’ “continua a ser o ‘processo de metabolismo com a natureza’ (Marx) e, portanto, material”; (2) da mesma forma, estes setores são minoria, e não uma ‘multidão’, “isso se deve ao facto de que a microeletrônica, que tornou supérfluo o trabalho industrial anterior, não produz nenhum novo trabalho capitalista em massa”; (3) por fim, a lógica econômica das atividades ‘imateriais’ (da cultura, informação e conhecimento) criaria, no lugar da antiga luta de classes do trabalho assalariado, uma visão neo-pequeno-burguesa: “Hardt/Negri pretendem prosseguir e eternizar a produção de mercadorias que se tornou obsoleta, com o expediente de uma formação de redes independentes que se instauram entre pequenos colectivos informacionais de ‘autovalorização’”.

Encontramos em BOLAÑO, C. (2007, p. 41), no entanto, uma atitude bem menos adversa às reflexões de Hardt & Negri. Se na nova era do capitalismo cognitivo não se pode:

afirmar que a nova classe trabalhadora surgida da Terceira Revolução Industrial seja mais consciente ou potencialmente revolucionária que antecessora do século XX (…), tampouco se pode afirmar o contrário. Isto porque aquele caráter informático, comunicacional e extremamente socializado do trabalho intelectual aponta efetivamente para uma possibilidade concreta de formas alternativas e possivelmente mais adequadas de organização da luta contra-hegemônica do que aquelas do velho movimento operário europeu e asiático que levaram às revoluções proletárias do século XX.

Para Bolaño, enfim, uma posição mais conveniente – do que a simples negação das teorizações que Hardt & Negri estabelecem diante da reestruturação capitalista – seria o estabelecimento de diretrizes científicas para se pensar como o ‘homem comum’ reage aos assujeitamentos biopolíticos, uma vez que parece estar bastante claro que hoje não procede mais uma análise limitada em categorias de entendimento da ‘exploração entre classes’ ou da ‘dominação entre Estados-nação’.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ora, acima de tudo, é preciso entender, que as principais reticências às propostas as de Hardt & Negri se localizam, mais propriamente, em sua aproximação às teorias pós-modernas que constatam mudanças como: as novas subjetividades, o novo estatuto e papel do conhecimento e das tecnologias, a dissolução da ‘luta de classes’. Tão logo, observa-se o distanciamento principalmente das interpretações marxistas ortodoxas, e isto é divisor de águas nas posições pro e contra os autores.

Hardt & Negri parecem estar preocupados em responder aos problemas e teorias dispostos hoje (e a tentar encontrar ‘novas saídas’) e suas resoluções sobre o problema da hegemonia recupera raízes de um pensar gramsciano[9]. Não à toa, a derradeira tese deles pensa como a questão da hegemonia não se pode limitar a controlar a produção econômica, mas deve abranger uma direção político-cultural. A nova hegemonia (ou a contra-hegemonia) não se estende sem uma ‘reforma intelectual e moral’. E parece criterioso dizer que nos termos do capitalismo cognitivo e do apoderamento biopolítico estas questões, enfim, estão cada vez mais práticas e presente.

Mas, afinal, é possível afirmar uma ‘insurreição’ da multidão em meio a uma sociedade de controle que parece cada vez mais submeter os desejos (os inconscientes) e determinar o flagelo da individuação e posição política dos indivíduos? A questão, sem dúvida, recai na análise crítica da cultura de nossa época. Podemos lembrar que, se tempos atrás Herbert Marcuse foi apontado como bastante descomedido ao prever saídas de emancipação no seu diagnóstico da revolução cultural, hoje, no entanto, é certo que não estava totalmente errado, uma vez que os grandes estandartes dos outsiders protagonizaram diversas transformações nas sociedades ocidentais como um todo.

As inovações tecnológicas ditam hoje novos contextos para a relação entre capital e vida. A decisão, no entanto, é política (e não tecnológica). Ao repensar a política e a subjetividade que dinamizam e têm seus efeitos no plano mundial, Hardt & Negri não podem ser apontados dentro da pecha de determinismo tecnológico. No momento em que o fortalecimento da política mundial significou uma significativa perda da base dos Estados-Nação, a nova ordem mundial simboliza o duelo entre o horizonte de duas biopotências contrárias: a do Império e a da Multidão.

Sem dúvida, as construções críticas não-tradicionais de Hardt & Negri são um grande mérito dos intelectuais – o livro é também um grande manifesto (e há todas as características nesse sentido). Um manifesto esperançoso, tácito e muito vivo deste momento histórico. Indiscutivelmente emblemático, corajoso e inovador. Atinge-se uma profunda análise deste novo fermento histórico e a iminência de novas interpretações da realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOLAÑO, César R. S. Trabalho, comunicação e desenvolvimento. Liinc em Revista, v°3, n°1, Março, pp. 34-43, 2007.

BORON, Atílio A. Império y Imperialismo: una lectura crítica de Michael Hardt y Antonio Negri. Buenos Aires, Clacso, 2001.

CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. Xamã, São Paulo, 1996.

DELEUZE, Gilles. Post Scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro, Ed. 34, pp. 219-226, 1992.

DUARTE, André. Hannah Arendt e a biopolítica: a fixação do homem como animal laborans e o problema da violência (pp. 147-161). In: CORREIA, Adriano (org.) Hannah Arendt e a condição humana. Quarteto, Salvador, 2006.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade, volume I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1993.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975 – 1976). São Paulo, Martins Fontes, 1999.

GORZ, André. Ócio revolucionário (entrevista a André Gorz). Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, São Paulo, 30/01/2005, p. 07, 2005.

HARDT, M. & NEGRI, A. Globalização e Democracia. In: Hardt & Negri (org.). Vozes no Milênio. Para pensar a globalização. Rio de Janeiro, Gryphus, pp. 15-21, 2002.

HARDT, M. & NEGRI. Império. 2ºed., Record, Rio de Janeiro, 2001.

HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992.

JAMENSON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1992.

KURZ, Robert. A máquina univeral de Harry Potter. O conceito de trabalho imaterial e o neo-utopismo reduzido à tecnologia. 2005. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3010200515.htm&gt;. Acessado em: 22/07/2009.

LESSA, Sérgio. Trabalho imaterial, classe expandida e revolução passiva. Revista Crítica Marxista. Boitempo, n°15, pp. 79-92, 2004.

LOJKINE, Jean. A Revolução Informacional. São Paulo, Cortez, 1995.

PELBART, Peter Pàl. Biopolítica e Biopotência no coração do Império. Artigo disponível em: <http://multitudes.samizdat.net>. Acessado em: 22/07/2009.


[1] Conferir o livro: JAMENSON (1992).

[2] Para aprofundamento a respeito, pode-se citar duas obras a respeito: CHESNAIS (1996) e  HARVEY (1992)

[3] São bem conhecidos os esclarecimentos de FOUCAULT, M. (1993; 1999) que evidenciaram, pela primeira vez, os termos em que a noção de biopolítica se assenta. A biopolítica se situa nos poderes disciplinares instituídos pelas tecnologias e disciplinas de jurisdição científica para governo da vida. Estes discursos de saber-poder, chamados de dispositivos de controle, foram visualizados na criação de: dispositivos de raça, de sexualidade e de segurança, etc.. Para o pensador francês, os resultados destas construções são vistos nas normalizações e adestramentos que encontramos em qualquer uma das grandes instituições da modernidade: a escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, e etc. que produzem, mais do que indivíduos dóceis e úteis, uma gestão produtiva da vida das populações.

[4] Interessante notar que tanto Michael Hardt como Antonio Negri são, na academia, estudiosos da filosofia política moderna e contemporânea. Hardt é um profundo estudioso das teorias pós-estruturalistas e especialista na filosofia de Deleuze. Publicou, em 1993, “Gilles Deleuze: An apprenticeship in Philosophy” (University of Minnesota, 1993). Negri, além de uma intensa atividade política, foi tradutor dos escritos de “Filosofia do Direito”, de Hegel. E tornou-se especialista em Descartes, Kant, Espinosa, Marx, Leopard e Dilthey.

[5] É preciso apontar que não somente Foucault nos dá pista para o entendimento mais aprofundado desta ideias de “Império”. H. Arendt, respondendo bastante negativamente sobre o poder biopolítico, dava várias pistas para as reflexões de Hardt & Negri. Em sua análise do que seria a política na modernidade tardia, pensou como a esfera política nas sociedades democráticas de massa está dentro de uma administração tecnocrática de interesses privados que esgota o ‘cuidado dos cidadãos pela coisa pública’. Como argumenta DUARTE (2006), o sentido de biopolítica em Arendt estava em diagnosticar que a preservação da vida do ‘animal laborans’ e a disseminação da violência sob os Estados autoritários e interesses sócio-econômicos privados imprimiu a transformação cada vez maior do humano circunscrito apenas às dimensões do trabalho e do consumo, no qual o ciclo repetitivo destas funções vitais satisfaz tão-somente a reprodução geral da espécie.

[6] Manuscrito de Marx, “Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie” (Elementos fundamentais para a crítica da economia política). Sua publicação foi póstuma, em 1941, organizada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo de Berlim e Moscou (durante a antiga URSS).

[7] Notamos aqui a aproximação das conclusões de nossos autores com as do sociólogo francês André Gorz. Autor das obras “Adeus ao Proletariado” e “O Imaterial”, ele mostrou que a ascensão da não-classe neoproletária, formada pela flexibilização produtiva pós-fordista, deu status a um novo tipo de ideário à superação capitalista. O saber “imaterial”, que rearranjou a relação valor, capital e saber, trouxe o emprego não-estável, o tempo livre e a ampliação de interações sociais. O fim do trabalho assalariado nos moldes fordista é ambiente para a liberação dos indivíduos da ‘impotência’ e ‘dependência’ de classe. Sobre isso, concluía: “creio que essa ideia está mais atual que nunca. Pois a produtividade da força de trabalho pós-fordista não depende mais da celeridade com a qual sujeitos executam tarefas prescritas ou do número de horas trabalhadas. Ela depende de um conjunto de faculdades ‘cognitivas’, de saberes intuitivos, da capacidade de julgar e de reagir ao imprevisto: coisas que não se ensinam, mas que fazem parte da cultura comum e só são adquiridas por meio do desabrochar das pessoas enquanto tais” (GORZ, 2005). Seria, em outras palavras, a formação da ‘multidão’?

[8] Devemos lembrar que desde a obra de D. Bells, “The coming of post-industrial society: a venture in social forecasting” [1973], a tese de uma ‘civilização terciária’ futura, que tornaria possível extinguir e resguardar igualdade entre as antigas divisões de classes, fora muito praticada.

[9] Como nos lembra BOLAÑO, C. (2007, p. 41): “a atual reestruturação capitalista coloca novamente em primeiro plano a possibilidade de superação da separação multi-secular entre trabalho manual e intelectual, mudando radicalmente a concepção convencional da relação entre intelectual, classe e partido. A isto deveria dedicar-se, com todo cuidado, a Ciência Política gramsciana e marxista hoje”.