FLUSSER E FAROCKI EM CONVERSAÇÃO

FLUSSER E FAROCKI EM CONVERSAÇÃO

 flusser e farocki

Como na ocasião em que se encontrou com Heiner Müller (filme perdido, mas se tem o diálogo publicado em texto), o tom é de uma conversação, e não de uma entrevista. Eles estão em um bar. No início do curta, Farocki apresenta brevemente os dois livros de Flusser do início da década de 1980, evidenciando o motivo do interesse que ficará cada vez mais claro nos trabalhos posteriores do cineasta: “De acordo com Flusser – diz a voz em off de Farocki –, um novo mundo se abriu com as imagens técnicas.”. Em Indústria e Fotografia, o cineasta demonstrava uma manifesta sensibilidade para pensar as transformações tecnológicas dos aparelhos foto-cinematográficos. Farocki identificará Flusser como o autor que eleva esta discussão a um ponto mais profundo, ensaiando um entendimento das mutações sociais e políticas que proporcionam as novas tecnologias digitais – especialmente em relação aos aparelhos ópticos (as máquinas de visão).

O cineasta pega o jornal que ele criticava nos agitprops dos anos 1960 – o sensacionalista Bild Zeitung, da corporação de mídia Springer – como tema da conversa com Flusser. A capa do jornal do dia se torna motivo para analisar e teorizar o suspeito jogo de montagem entre as palavras (cor, tamanho, disposição, estilo) e as imagens (caráter, enquadramento, cor, disposição). Este jogo quer provocar o “choque”, como adverte o título. Flusser reflete: “As pessoas ainda costumam dizer que a imagem serve para ilustrar o texto; ou que, inversamente, existe um texto para esclarecer uma imagem. Mas nesta página observam-se claramente como esses dois tipos de comunicação começam a se penetrar mutuamente. O texto servindo como uma função da imagem e a imagem como uma função do texto e ambos entrando em ‘choque’ um com o outro”.

A partir do admirável potencial analítico e teórico de Flusser, é possível encontrar uma fenomenologia expressa capa do jornal sensacionalista. As relações entre as próprias imagens/palavras na capa geram ao espectador uma montagem caótica que visa deturpar a capacidade de pensar e absorver criticamente as imagens e as palavras – e que, mesmo assim, busca estabelecer um elo indutivo, mágico, em um “baixo nível de consciência” (Flusser). Como veremos na tradução abaixo, o olhar distanciado dos dois pensadores evidencia o modo de (de)composição dos eventos naquele jornal, dado pelo princípio de, a todo custo, encontrar um lugar acessível ao senso crítico, com a imagem, com a escrita.

Em 1986, portanto, Farocki permaneceria acertado em relação à luta que empreendeu, junto com outros amigos, no movimento estudantil alemã de 1968: a capa do jornal, esta mídia como um todo, ainda buscava expulsar a capacidade de o espectador pensar a realidade. A montagem do jornal da corporação Springer aparecia, portanto, exatamente como o inverso das intenções reflexivas e demonstrativas que Farocki tentava colocar em prática. O inimigo ainda era o mesmo, apenas as formas de explanação e luta do cineasta é que havia mudado bastante. O registro do diálogo serviria de material para um documentário em programa de televisão, sendo que, de tal maneira, Farocki ainda tentava, de alguma maneira, realizar sua “subversão institucionalizada” na televisão, iniciada nos anos 1970.

FRASES-CHOQUE / IMAGENS-CHOQUE. UMA CONVERSA COM VILÉM FLUSSER (Farocki, 1986, 12’30’’).

 flusser imagem técnica fotografia

HF (Harun Farocki): (voz em off do documentário): Por uma filosofia da fotografia e No universo das imagens técnicas. Para Flusser, a fotografia é uma invenção de longo alcance, como a imprensa. A fotografia é o ponto de partida para o desenvolvimento de imagens técnicas: filmes, imagens eletrônicas, computações gráficas. De acordo com Flusser, um novo mundo se abriu com as imagens técnicas. A conversa pretende levantar alguns pontos do pensamento de Flusser.

Conversa:

 HF: Eu trouxe um jornal do dia, que, aliás, chama-se Bild [Imagem]. Eu gostaria de olhar contigo a capa do jornal e discutir como a imagem e o texto se relacionam entre si nesta página. E pensar o que as imagens aqui significam, afinal.

Bild Berlin

VF (Vilém Flusser): Eu penso que esta página é muito influente. E no sentido em que ela rompe com três tipos de relações seguidas entre imagem e texto. As pessoas ainda costumam dizer que a imagem serve para ilustrar um texto; ou que, inversamente, existe um texto para esclarecer uma imagem. Mas nesta página pode-se claramente observar como esses dois tipos de comunicação estão a se penetrar mutuamente. O texto servindo como uma função da imagem e a imagem como uma função do texto; e ambos colocando em “cheque” um ao outro.

Bild Berlin 2

HF: Sim, e essa penetração pode ser considerada literalmente. Aqui está uma fotografia de uma pessoa no chão baleada. Os comentários de texto dizem que ela se encontra no aeroporto… E aqui um braço está penetrando na manchete que afirma: “Noite de Sangue”. Bem aqui há uma mão inteira, entrando no texto.

VF: Eu gostaria de dizer duas coisas a mais. Primeiro, nós estamos acostumados para o fato de que as letras são em preto e branco. Aqui elas estão em preto e branco. E esta mão que você estava falando dá às palavras um caráter corporal. Isto coloca uma terceira dimensão, de modo que a palavra de fato nega a imagem. A imagem tenta reduzir as três dimensões em duas. E aqui, a escrita, essencialmente linear – as três dimensões reduzidas em uma –, ganha um caráter corporal; e a imagem ganha uma letra, literalmente.

HF: Sim. Eu também penso que este jornal, em preto em branco, também deve significar algo icônico, porque a palavra “noite” tem de ser ilustrada. A noite é negra e o texto é a luz que esclarece a noite.

VF: Contudo, a mensagem que é fornecida aqui é colocada em um clima mágico de violência; ainda que em uma aparente contradição, mas em um evidente clima. Isto nos mostra que é um caso de reportagem criminal pensada de maneira cuidadosa.

HF: O que quer dizer com “cuidadosa”?

VF: Porque o texto é um código para criticar e pensar. Texto é uma mensagem diacrônica que se desenvolve linearmente, com a intenção de sincronizar o olhar. Quando sincronizamos alguma coisa diacronicamente, nós estamos criticando isso. Então o texto é um código que pertence ao pensamento crítico. Mas que aqui se transforma no oposto, porque aqui,  ao contrário, a sensação de violência precisa ser evocada de qualquer maneira.

HF: Quer dizer que o texto é assim produzido a partir da imagem?

VF: Produzido a partir de uma imagem. Além disso, o texto deve ser tornar mágico – ainda que que foi originalmente inventado para ser o contrário.

HF: O que me interessa, eu repito, é o uso das imagens, eu quero dizer: por que há afinal fotografias nesta página? E, aqui nós podemos ver uma mulher e você pode vê-la de novo com óculos beijando sua filha e, abaixo disto, o texto mencionando que ambos estão agora mortos. E aqui diz: “Esta felicidade foi destruída”. Para representar esta felicidade, dá-se uma fraca representação de maternidade; e que, alguma forma, não pareceu suficiente para os designers, porque a mãe não pode ser vista muito bem. Eles teriam que fotografar mais uma vez a mãe, supostamente como uma mulher atraente. Eles tiveram que colocar estas duas imagens, ou seja, como uma mulher atraente e, adicionalmente, como uma boa mãe também. Na verdade, ressaltam para outra coisa, que desaparece em sua maternidade. De tal modo, o evento torna-se um evento factual; ou seja, o jornal faz isso porque a fotografia é um pouco inadequada. Estes eventos aconteceram verdadeiramente, caso contrário, teriam perfeitamente encenado isto. Como se fosse um truque de documentário.

Flusser

VF: Sim, mas eu penso que nós não podemos fazer esta análise semântica antes que observemos a página como um todo… Como um fenômeno, por assim dizer. E o que me impressiona em primeiro lugar é o seguinte: nossos olhos são movidos erraticamente sobre a superfície; nós nos aproximamos do texto deixando-os mover ao longo da superfície, ou seja, para criar uma empatia com o fato histórico.  E nós, normalmente, nos aproximamos da imagem deste modo como uma varredura que segue nossos modos de auto-seleção – e, de tal modo, somos capazes de produzir mensagens para nós mesmos, a partir da mensagem superficial da imagem. Porém, quando nós estamos diante desta página, ficamos impedidos de ambos os lados: assim que tentamos ler de maneira retilínea, encontramos constantemente obstáculos; e quando tentamos varrer a imagem, digamos, seguindo nossos próprios cortes, montagens, esbarramos completamente em adjacências inesperadas. Por exemplo, você vê também na página inteira outra imagem ou texto.

HF: Isto é importante: o texto diz: “Ela teve que se ajoelhar”, “tiro no pescoço”. E a imagem invade… Então quando um olha aqui com um foco, obtém um forte indício.

VF: Muito importante. Eu digo… Antes de quebrar a cabeça para o que a página está querendo dizer, devemos prestar atenção para o fato de que isto, na verdade, não é permitido, absolutamente. Não há permissão para nós lermos o texto e olhar para as imagens. A manufaturação de forma caótica é proposital aqui… O que significa quebrar a nossa consciência. Nossa consciência é concebida para ser eliminada, e devemos absorver a mensagem em um baixo nível de consciência – de modo que não somos capazes de absorvê-la corretamente. E, estranhamente, a página pode fazer isto exatamente porque temos a capacidade de ler. Para os analfabetos a página seria diferente. Então, em um primeiro ponto, logo que estamos conscientes que de fato esta página está evitando que nós decifremos coisas, somente assim podemos falar sobre significado. E, portanto, isto significado é que um indecifrável, mas em um nível de querer-alcançar-algo-de-concreto. Somente quando nós colocamos isto em consideração que somos capazes de apreciar, aquilo que você falou, ou seja, o fato de que os modelos tradicionais de comportamento, valores – em uma maneira kitsch de representação… –, mas estes valores são aceitos como dados. Por exemplo, o amor maternal; por exemplo, o progresso técnico, nesta imagem de um avião. Estes valores estão presentes em nós. E, por assim dizer, aceitamos cegamente que todos dividam estes valores. Contudo, as pessoas altamente educadas são capazes de ir além destes valores. E nós somos capazes de formar os próprios julgamentos sobre os valores. Isto é um típico argumento de demagogia.

HF: Então, um pode imaginar que estes designers poderiam ser mais adequados. Estas imagens não são apenas simbolização de dois conceitos. Elas têm algo mais, que um poderia chamar de murmúrio. Há também um certo tipo de conduta para levar a este murmúrio, caso contrário, outro poderia ter desenhado.

VF: Você está completamente certo. As fotografias são utilizadas porque alude a um consenso geral. Na fotografia, a tão chamada realidade é de alguma forma exposta. Então aqui a ilusão tem que ser criada, de modo que esta página vem a ser algum tipo de metafísica inacessível da realidade, em que tudo está no mesmo nível. Quando você lê aqui, por exemplo, “doença do coração” ou “ativista ambiental bebeu cianeto de potássio”…, ou seja, a tão-chamada realidade torna-se um nível de violência sub-humana. Poder-se-ia dizer que isto é dito de uma forma flamejante: basta olhar para isto. Quanto você, em seu subconsciente, tem o vício para este tipo de existência, você não tem vergonha. Isto é normal. Mas quando você tiver superado isto – e se você possuir estes valores eternos aqui mencionados – tal coisa será defendida por este jornal.

HF: Sim, eles trabalham com esta moral dupla.

VF: Somos devotados para o amor maternal e para a paz; e, portanto, consentimos que nos informem sobre assassinato e ódio.

HF: Sim, exatamente… Esta relação especial entre texto e imagem, ou seja, que curva o texto para o modo de uma imagem e modifica a imagem na forma de informação conceitual, ou faz dela um tipo de slogan, tem algo a ver com o que você descreve no seu livro, quando no século XIX as imagens técnicas surgem, mas em outro uso mágico, como vimos agora?

VF: Sim, você tem que estar ciente do fato de que nós não falamos normalmente em um bar, mas para a televisão, e, consequentemente, tudo o que estamos falando, é em si mesmo imerso em imagens, e de novo magicamente modificado pelo receptor. Então estamos em uma ladeira escorregadia. Estamos aqui contemplando, em um aparente modo transcendental,  esta “kitschficação”, esta brutalização e redução da dignidade humana por meio de uma demagogia, e isto serve a nós mesmo como fator em uma nova “magicalização”, pela televisão. Eu penso, honestamente, que quando alguém está nos assistindo isto pela televisão, isto deveria ser dito. Nós deveríamos fazer um apelo para os espectadores e dizer: use esta habilidade crítica porque estamos usando esta palavra contra nós mesmos!

(traduzido a partir das legendas da versão em inglês)